10.11.10

Carta a José Marcio Penido II

Porto, 22. 12. 79

Zézim,
cheguei hoje de tardezinha da praia, fiquei lá uns cinco dias, completamente
só (ótimo!), e encontrei tua carta. Esses dias que tô aqui, dez, e já parece um mês,
não paro de pensar em você. Tou preocupado, Zézim, e quero te falar disso. Fica
quieto e ouve, ou lê, você deve estar cheio de vibrações adéliopradianas e, portanto,
todo atento aos pequenos mistérios. É carta longa, vai te preparando, porque eu já
me preparei por aqui com uma xícara de chá Mu, almofada sob a bunda e um maço
de Galaxy, a decisão pseudo-inteligente.
Seguinte, das poucas linhas da tua carta, DOZE frases terminam com ponto
de interrogação. São, portanto, perguntas. Respondo a algumas. A solução,
concordo, não está na temperança. Nunca esteve nem-vai estar. Sempre achei que
os dois tipos mais fascinantes de pessoas são as putas e os santos, e ambos são
inteiramente destemperados, certo? Não há que abster-se: há que comer desse
banquete. Zézim, ninguém te ensinará os caminhos. Ninguém me ensinará os
caminhos. Ninguém nunca me ensinou caminho nenhum, nem a você, suspeito.
Avanço às cegas. Não há caminhos a serem ensinados, nem aprendidos. Na
verdade, não há caminhos. E lembrei duns versos dum poeta peruano (será Vallejo?
não estou certo): “Caminante, no hay caminos. Pero el camino se hace al andar”.
Mais: já pensei, sim, se Deus pifar. E pifará, pifará porque você diz “Deus é
minha última esperança”. Zézim, eu te quero tanto, não me ache insuportavelmente
pretensioso dizendo essas coisas, mas ocê parece cabeça dura demais. Zézim, não
há última esperança a não ser a morte. Quem procura não acha. É preciso estar
distraído e não esperando absolutamente nada. Não há nada a ser esperado. Nem
desesperado. Tudo é maya/ilusão. Ou samsara/ círculo-vicioso.
Certo, eu li demais zen-budismo, eu fiz yoga demais, eu tenho essa coisa de
ficar mexendo com a magia, eu li demais Krishnamurti, sabia? E também Allan
Watts, e D.T. Suzuki, e isso freqüentemente parece um pouco ridículo às pessoas.
Mas dessas coisas, acho que tirei pra meu gasto pessoal pelo menos uma certa
tranqüilidade.
Você me pergunta: que que eu faço? Não faça, eu digo. Não faça nada,
fazendo tudo, acordando todo dia, passando café, arrumando a cama, dando uma
volta na quadra, ouvindo um som, alimentando a Pobre. Você tá ansioso e isso é
muito pouco religioso Pasme: acho que você é muito pouco religioso. Mesmo.
Você deixou de queimar fumo e foi procurar Deus. Que é isso? Tá substituindo a
maconha por Jesuzinho? Zézim, vou te falar um lugar-comum desprezível, agora, lá
vai: você não vai encontrar caminho nenhum fora de você. E você sabe disso. O
caminho é in, não off. Você não vai encontrá-lo em Deus nem na maconha, nem
mudando pra Nova York, nem.
Você quer escrever. Certo, mas você quer escrever? Ou todo mundo te cobra
e você acha que tem que escrever? Sei que não é simplório assim, e tem mil coisas
outras envolvidas isso. Mas de repente você pode estar confuso porque fica todo
mundo te cobrando, como é que é, e a sua obra? cadê o romance, quedê a novela,
quedê a peça teatral? DANEM-SE, demônios. Zézim, você só tem que escrever se
isso vier de dentro pra fora, caso contrário não vai prestar, eu tenho certeza, você
poderá enganar a alguns, mas não enganaria a si e, portanto, não preencheria esse
oco. Não tem demônio nenhum se interpondo entre você e a máquina. O que tem
é uma questão de honestidade básica. Essa perguntinha: você quer mes escrever?
Isolando as cobranças, você continua querendo? Então vai, remexe fundo, como
diz um poeta gaúcho, Gabriel de Britto Velho, “apaga o cigarro no peito! diz pra ti
o que não gostas de ouvir/ diz tudo”. Isso é escrever. Tira sangue com as unhas. E
não importa a forma, não importa a “função social”, nem nada, não importa que, a
princípio, seja apenas uma espécie de auto-exorcismo. Mas tem que sangrar a-bundan-
te-men-te. Você não está com medo dessa entrega? Porque dói, dói, dói. É de
uma solidão assustadora. A única recompensa é aquilo que Laing diz que é a única
coisa que pode nos salvar da loucura, do suicídio, da auto-anulação: um sentimento de
glória interior. Essa expressão é fundamental na minha vida.
Eu conheci razoavelmente bem Clarice Lispector. Ela era infelicíssima,
Zézim. A primeira vez que conversamos eu chorei depois a noite inteira, porque ela
inteirinha me doía, porque parecia se doer também, de tanta compreensão sangrada
de tudo. Te falo nela porque Clarice, pra mim, é o que mais conheço de
GRANDIOSO, literariamente falando. E morreu sozinha, sacaneada, desamada,
incompreendida, com fama de “meio doida”. Porque se entregou completamente
ao seu trabalho de criar. Mergulhou na sua própria trip e foi inventando caminhos,
na maior solidão. Como Joyce. Como Kafka, louco e só lá em Praga. Como Van
Gogh. Como Artraud. Ou Rimbaud.
É esse tipo de criador que você quer ser? Então entregue-se e pague o preço
do pato. Que, freqüentemente, é muito caro. Ou você quer fazer uma coisa bemfeitinha
pra ser lançada com salgadinhos e uísque suspeito numa tarde amena na
Cultura, com todo mundo conhecido fazendo a maior festa? Eu acho que não. Eu
conheci/conheço muita gente assim. E não dou um tostão por eles todos. A você,
eu amo. Raramente me engano.
Zézim, remexa na memória, na infância, nos sonhos, nas tesões, nos
fracassos, nas mágoas, nos delírios mais alucinados, nas esperanças mais descabidas,
na fantasia mais desgalopada, nas vontades mais homicidas, no mais aparentemente
inconfessável, nas culpas mais terríveis, nos lirismos mais idiotas, na confusão mais
generalizada, no fundo do poço sem fundo do inconsciente: é lá que está o seu
texto. Sobretudo, não se angustie procurando-o: ele vem até você, quando você e
ele estiverem prontos. Cada um tem seus processos, você precisa entender os seus.
De repente, isso que parece ser uma dificuldade enorme pode estar sendo
simplesmente o processo de gestação do sub ou do in-consciente.
E ler, ler é alimento de quem escreve. Várias vezes você me disse que não
conseguia mais ler. Que não gostava mais de ler. Se não gostar de ler, como vai
gostar de escrever? Ou escreva então para destruir o texto, mas alimente-se.
Fartamente. Depois vomite. Pra mim, e isso pode ser muito pessoal, escrever é
enfiar um dedo na garganta. Depois, claro, você peneira essa gosma, amolda-a,
transforma. Pode sair até uma flor. Mas o momento decisivo é o dedo na garganta.
E eu acho — e posso estar enganado — que é isso que você não tá conseguindo
fazer. Como é que é? Vai ficar com essa náusea seca a vida toda? E não fique
esperando que alguém faça isso por você. Ocê sabe, na hora do porre brabo, não
há nenhum dedo alheio disposto a entrar na garganta da gente.
Ou então vá fazer análise. Falo sério. Ou natação. Ou dança moderna. Ou
macrobiótica radical. Qualquer coisa que te cuide da cabeça ou/e do corpo e, ao
mesmo tempo, te distraia dessa obsessão. Até que ela se resolva, no braço ou por si
mesma, não importa. Só não quero te ver assim engasgado, meu amigo querido.
Pausa.
Quanto a mim, te falava desses dias na praia. Pois olha, acordava às 6, 7 da
manhã, ia pra praia, corria uns quatro quilômetros, fazia exercícios, lá pelas 10
voltava, ia cozinhar meu arroz. Comia, descansava um pouco, depois sentava e
escrevia. Ficava exausto. Fiquei exausto. Passei os dias falando sozinho,
mergulhado num texto, consegui arrancá-lo. Era um farrapo que tinha me nascido
em setembro, em Sampa. Aí nasceu, sem que eu planejasse. Estava pronto na
minha cabeça. Chama-se Morangos mofados, vai levar uma epígrafe de Lennon &
McCartney, tô aqui com a letra de Strawberry fields forever pra traduzir. Zézim, eu
acho que tá tão bom. Fiquei completamente cego enquanto escrevia, a personagem
(um publicitário, ex-hippie, que cisma que tem câncer na alma, ou uma lesão no
cérebro provocada por excessos de drogas, em velhos carnavais, e o sintoma —
real — é um persistente gosto de morangos mofados na boca) tomou o freio nos
dentes e se recusou a morrer ou a enlouquecer no fim. Tem um fim lindo, positivo,
alegre. Eu fiquei besta. O fim se meteu no texto e não admitiu que eu interferisse.
Tão estranho. Às vezes penso que, quando escrevo, sou apenas um canaltransmissor,
digamos assim, entre duas coisas totalmente alheias a mim, não sei se
você entende. Um canal-transmissor com um certo poder, ou capacidade, seletivo,
sei lá. Hoje pela manhã não fui à praia e dei o conto por concluído, já acho que na
quarta versão. Mas vou deixá-lo dormir pelo menos um mês, aí releio — porque
sempre posso estar enganado, e os meus olhos de agora serem incapazes de verem
certas coisas.
Aí tomei notas, muitas notas, pra outras coisas. A cabeça ferve. Que bom,
Zézim, que bom, a coisa não morreu, e é só isso que eu quero, vou pedir demissão
de todos os empregos pela vida afora quando sentir que isso, a literatura, que é só o
que tenho, estiver sendo ameaçada — como estava, na Nova.
E li. Descobri que ADORO DALTON TREVISAN. Menino, fiquei dando
gritos enquanto lia A faca no coração, tem uns contos incríveis, e tão absolutamente
lapidados, reduzidos ao essencial cintilante, sobretudo um, chamado Mulher em
chamas. Li quase todo o Ivan Angelo, também gosto muito, principalmente de O
verdadeiro filho da puta, mas aí o conto-título começou a me dar sono e parei. Mas ele
tem um texto, ah se tem. E como. Mas o melhor que li nesses dias não foi ficção.
Foi um pequeno artigo de Nirlando Beirão na última IstoÉ (do dia 19 de dezembro,
please, leia), chamado O recomeço do sonho. Li várias vezes. Na primeira, chorei de
pura emoção — porque ele reabilita todas as vivências que eu tive nesta década.
Claro que ele fala de uma geração inteira, mas daí saquei, meu Deus, como sou
típico, como sou estereótipo da minha geração. Termina com uma alegria total:
reinstaurando o sonho. É lindo demais. E atrevido demais. É novo, sadio. Deu uma
luz na minha cabeça, sabe quando a coisa te ilumina? Assim como se ele formulasse
o que eu, confusamente, estava apenas tateando. Leia, me diga o que acha. Eu não
me segurei e escrevi uma carta a ele dizendo isso. Não sou amigo dele, só
conhecido, mas acho que a gente deve dizer.
Escrevendo, eu falo pra caralho, não é?
Aqui em casa tá bom. É sempre um grande astral, não adianta eu criticar. O
astral ótimo deles independe da opinião que eu possa ter a respeito, não é
fantástico? A casa tá meio em obras, Nair mandou construir uma espécie de jardim
de inverno nos fundos, vai ligar com a sala. Hoje estava puta porque o Felipe não
vai mais fazer vestibular: foi reprovado novamente no 3º colegial. Minha irmã
Cláudia ganhou uma Caloi 10 de Natal do noivo (Jorge, lembra?), e eu me apossei
dela e hoje mesmo dei voltas incríveis pelo Menino Deus. Márcia tá bonita, mais
adultinha, assim com um ar meio da Mila. Zaél cozinhando, hoje faz arroz com
passas para o jantar.
Povos outros, nem vi. Soube que A comunidade está em cartaz ainda e tenho
granas pra receber. Amanhã acho que vou lá.
Tô tão só, Zézim. Tão eu-eu-comigo, porque o meu eu com a família é meio
de raspão. Tá bom assim, não tenho mais medo nenhum de nenhuma emoção ou
fantasia minha, sabe como? Os dias de solidão total na praia foram principalmente
sadios.
Ocê viu a Nova? Tá lá o seu Chico, tartamudeante, e uma foto muito
engraçada de toda a redação — eu com cara de “não me comprometam, não tenho
nada a ver com isso”. Dê uma olhada. Falar nisso, Juan passou por aqui, eu tava na
praia, falou com Nair por telefone, estava descendo de um ônibus e subindo
noutro. Deixou dito que volta dia 3 de janeiro ou fevereiro, Nair não lembra, pra
ficar uns dias. Ficará? E nada acontecerá, Uma vez me disseram que eu jamais
amaria dum jeito que “desse certo”, caso contrário deixaria de escrever. Pode ser.
Pequenas magias. Quando terminei Morangos mofados, escrevi embaixo, sem querer,
“criação é coisa sagrada”. É mais ou menos o que diz o Chico no fim daquela
matéria. É misterioso, sagrado, maravilhoso.
Zézim, me dê notícias, muitas, e rápido. Eu não pensei que ia sentir tanta
falta docê. Não sei quanto tempo ainda fico, mas vou ficando. Quero escrever
mais, voltar à praia, fazer os documentos todos. Até pensei: mais adiante, quando já
estivesse chegando a hora de eu voltar, você não queria vir? A gente faria o mesmo
esquema de novo, voltaríamos juntos. A família te ama perdidamente, hoje
pintaram até uns salseirinhos rápidos porque todo mundo queria ler a matéria do
Chico ao mesmo tempo.
“Let me take you down cause I’m going to strawberry fields
nothing is real, and nothing to get hung about
strawberry fields forever
strawberry fields forever
strawberry fields forever”.
Isso é o que te desejo na nova década. Zézim, vamos lá. Sem últimas
esperanças. Temos esperanças novinhas em folha, todos os dias. E nenhuma, fora
de viver cada vez mais plenamente, mais confortáveis dentro do que a gente, sem
culpa, é. Let me take you: I’m going to strawberry fields.
Me conta da Adélia.
E te cuida, por favor, te cuida bem. Qualquer poço mais escuro, disque
0512-33-41-97. Eu posso pelo menos ouvir. Não leve a mal alguma dureza dita. E
porque te quero claro. Citando Guilherme Arantes, pra terminar: “Eu quero te ver
com saúde/ sempre de bom-humor/ e de boa-vontade.”
Um beijo do
Caio

PS — Abraço pro Nello, Pra Ana Matos, e Niño também.

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